A Casa D`Agua - Uma arquitetura mais generosa com a cidade

Sep

13

Uma arquitetura mais generosa com a cidade

Fonte: Valor Econômico 
 

 

Quando um edifício tem o projeto assinado por um arquiteto consagrado, até a reunião de condomínio ganha holofotes. Moradores do 360°, prédio concebido por Isay Weinfeld, em São Paulo, foram parar no paredão das redes sociais nas últimas semanas. Por causa do vento, quase metade deles, 17 para ser mais exata, queria fechar as varandas com vidros, uma moda na cidade estimulada pelas próprias construtoras que concebem salas de estar menores já pensando nesse artifício. Não é o caso do 360°.

Os espaços lá são generosos. As varandas foram pensadas para funcionar como varandas, além de serem um recurso do design: cada vão entre os andares dá a impressão que o edifício é formado por caixas empilhadas. O 360° não foi criado para ser mais um monolito na paisagem.

A maioria (21) vetou a proposta. Mesmo que passasse não teria a aprovação da prefeitura, muito menos do próprio autor. Houve quem defendesse na rede o direito dos moradores na busca pela comodidade térmica. Mas no geral foi um massacre contra a "ignorância" na tentativa de mudar um já considerado "ícone" da arquitetura da cidade. A questão é por que os moradores pagaram mais para morar num prédio diferenciado se não valorizam a diferença?

"A arquitetura entrou no 'shoplist' do brasileiro. Ele privilegia mais o status do que o uso", diz Marcelo M. Bicudo, arquiteto e diretor de criação da Epigram, consultoria de "branding" e "retail". Como as pessoas passam mais tempo em casa, precisam transformá-la no seu título de nobreza e um projeto assinado é consumido como uma bolsa logada. "Em muitos casos as assinaturas não se traduzem em qualidade efetiva do desenho", diz Lourenço Gimenes, um dos integrantes do escritório FGMF.

O barraco no 360° expõe também um momento de transição no gosto do paulistano. "A tensão estabelecida ali é entre a demanda pela modernidade e o desejo pretensamente aristocrático e conservador que gerou nos últimos anos a onda neoclássica", destaca Samuel Kruchin, da Kruchin Arquitetura. Entender as nuances do gosto da elite de São Paulo tem sido o universo de pesquisa acadêmica da socióloga Carolina Pulici. Em seu trabalho de pós-doutorado, ela investigou "a consagração social de um gosto controverso: prédios neoclássicos".

Apesar de o estudo ser ainda preliminar, uma das razões que estaria na atual rejeição ao neoclássico é a apropriação do estilo pelos novos ricos. "Os prédios neoclássicos podem ser entendidos dentro do ponto de vista das estratégias distintivas vigentes nas relações de classe", escreve ela. E citando o sociólogo alemão Norbert Elias, destaca que "em ordens sociais de extrema mobilidade, é comum as pessoas serem extremamente sensíveis a tudo que ameace sua posição, ou seja, é corrente o desenvolvimento de angústias ligadas ao status".

O neoclássico que simboliza a tradição cultural clássica, que evoca a monumentalidade e elegância europeias e remete aos casarões da aristocracia paulistana foi de tal forma massificado e mal reproduzido que teve abalada sua função de distinção. Mas o que colocar no lugar? "Dos anos 80 até metade dos anos 2000 houve um violento esvaziamento do mercado da construção e uma perda de referência arquitetônica", diz Kruchin. Só de 2005 para cá, com o aquecimento do mercado imobiliário, destaca ele, é que se criou espaço para se trabalhar conceitos novos e uma demanda por inovação.

Mas esse público não adere imediatamente ao modernismo, saindo do polo estético do mais para o polo do menos. Uma das razões da supremacia dos últimos anos do neoclássico, diz o estudo de Carolina, é que as pessoas reconheciam que essas construções envelheciam melhor e evocavam o imaginário de palácios, enquanto as obras modernas "são feitas de materiais que ficam mais corroídos", que resistem mal ao tempo e exigem mais manutenção. Além disso, há uma oposição entre áreas compartimentadas que mostravam o lugar de cada um na casa, inclusive dos empregados, e as novas plantas que não estabelecem barreiras hierárquicas no uso do espaço.

"Num primeiro momento, vejo uma tentativa de captar esse público alisando o volume do neoclássico, apostando em fachadas beges homogêneas, com uma tipologia pobre. O mercado ainda arrisca pouco e as incorporadoras não têm cultura arquitetônica", diz Kruchin. Para Marcelo Bicudo, há uma corrente neomoderna em andamento, que propõe linhas mais limpas. "O que era um produto de nicho, como os prédios da Zarvos, agora já está sendo massificado. E a associação desses produtos é imediata com os descolados."

A arquitetura como um objeto de consumo pode ser uma âncora social, mas não cobre o gap cultural. "Avançamos um degrau na valorização da qualidade, mas ainda precisamos de anos de maturação. Esse processo não é fácil", diz Lourenço Gimenes. As pessoas, de qualquer forma, estão apurando o olhar e ficando mais exigentes com a paisagem que a cercam. A reação à alteração da fachada do 360° demonstra isso. Talvez por viajarem mais e se encantarem com outros modelos de cidade e edificações. Ou por andarem mais de bicicleta, mesmo que seja por lazer, ou a pé, para ir à boulangerie da esquina, e se incomodar com o que antes não reparavam. Talvez por terem de pôr abaixo todas as paredes do imóvel que compram porque nunca atendem às suas necessidades. Estão saturadas da falta de compromisso estético e funcional dos empreendimentos públicos e privados.

Um dos lançamentos da Kruchin é em São Miguel Paulista, nas franjas da cidade, um conjunto de sobradinhos que poderia ter sido concebido para qualquer bairro de alto padrão. Ele fez um cruzamento da tradição das vilas paulistanas com a "volumetria, as cores e o branco da arquitetura tradicional barroca". Todas casas têm jardim, varanda e quintal e, garante ele, "não custaram mais por ter um projeto diferenciado". "A periferia não tem valor arquitetônico e eu quis fazer uma inversão da ordem." Ele diz que o país vive o momento ideal para se cultivar uma "crítica do gosto". "Não vi nenhuma discussão sobre a qualidade arquitetônica dos estádios, por exemplo. Ele são horrorosos e vão ser nossa herança da Copa."

A verdade também é que os arquitetos se ausentaram desse debate nos últimos anos. Embarcaram na obsessão da indústria e dos moradores para se obter cada centímetro de área fechada, sem nenhuma contrapartida para o entorno. Agora buscam um olhar mais generoso e uma interação com a cidade. Um dos projetos residenciais da FGMF, no bairro da Pompeia, em São Paulo, por exemplo, não tem muro e a calçada foi alargada para que o jardim seja compartilhado por quem passa na rua.

"Não há barreira visual, mas não quer dizer que não haja segurança. Há espelho d'água e desníveis que impedem o acesso. Tudo o que não queríamos era os muros altos." Uma cidade com menos barreiras começa a se desenhar. Imagine, então, quando varandas abertas forem sinônimo de bom gosto. Chique vai ser se descabelar com vento e brigar pela qualidade do ar.

Por Angela Klinke

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